A violência simbólica da meritocracia

Kayla Pachêco


Poderíamos pensar que é mais uma cena bucólica, romantizada, como aquelas brincadeiras de escolinha da infância. Mas não podemos compactuar com o negligenciamento do Estado perante a desigualdade de condições que assola a formação de muitos jovens de nosso país. 

A imagem acima não faz parte de um álbum de recordações, é atual, foi registrada nesse início de junho, no quintal da casa de uma das alunas do Ensino Médio de uma comunidade da zona rural, aqui no extremo norte do Tocantins. A fotografia não retrata uma brincadeira. Nesse chão de terra, debaixo de uma mangueira, um grupo de alunas se reuniu para tentar responder ao exame simulado do Enem, proposto pela Secretaria de Educação, durante o isolamento social que provocou a suspensão das aulas em todo o estado. 

No início da semana, bem de última hora, recebemos pelo whatsApp, um vídeo institucional da Seduc anunciando o primeiro simulado do Enem em 2020, que seria realizado no dia seguinte. Justamente dois dias depois de nossa comunidade escolar perder a mãe de uma aluna para a Covid-19, vem aquela mensagem subliminar da meritocracia capitalista “Não sabendo que era impossível, foi lá e fez...”
No vídeo, um jovem branco de cabelo liso, com traços asiáticos, pinta de youtuber e sotaque goiano/mineiro, dá uma verdadeira lição de moral numa espécie de tutorial para “mandar bem” nos estudos durante a pandemia. 

De seu cenário com aparência bem confortável, à frente de um computador e com uma estante enorme e cheia de livros ao fundo, o ator adverte seu público, os alunos, que, durante a prova a ser realizada de casa, seria terminantemente proibido consultar internet ou usar um livro, pois seria oportunidade de “testar conhecimento”, afinal, com base nela os alunos poderiam saber o que falta para alcançar boa média no Enem “e conseguir um futuro muito bom”. 

Em seu roteiro, o jovem apenas não informou que o bendito simulado era uma cópia fiel do último Enem realizado pelo MEC. Preferiu escolher o discurso que reforça o tom moralizante e excludente ao citar que para responder às questões, ele havia escolhido um ambiente “com sabedoria”, tranquilo, seu quarto, para que ninguém o atrapalhasse durante a prova. 

Encerra sua encenação ressaltando a importância dos estudantes estarem “bem alimentados e hidratados”, o que me soou como o tom mais violento simbolicamente. Por não conhecer a realidade da maioria dos estudantes de nosso estado ou por tentar silenciar os problemas que já enfrentávamos antes da pandemia, obviamente.

O autor desse discurso exclui de sua enunciação, os estudantes que vivem em situação de vulnerabilidade econômica, que não conseguem manter-se “bem alimentados”, quiçá escolher “com sabedoria” seu quarto exclusivo para responder a um exame simulado enquanto seus pares morrem de Covid bem próximo deles. 

Como bem refletiu uma amiga professora diante dessa falácia, em meio ao caos, enquanto quem não morre vítima do corona,  adoece emocionalmente, pois a única preocupação do Estado é  simular uma regularidade.  

É triste que ninguém se preocupe com a saúde mental de alunos e professores. É revoltante que o Estado, a serviço do capital, massacre tantos jovens furtando-lhes perspectiva de futuro no engessamento dos serviços, sem enxergar as especificidades de seu público. 

Na política dos números, não veem rostos nem vidas, não há compromisso com a formação para a cidadania. O que importa são apenas dados, evidências e estatísticas, num verdadeiro faz-de-conta, como se o papel do Estado fosse uma brincadeira de criança no quintal.

Comentários

  1. "Agora era fatal que o faz de conta terminasse assim, pra lá deste quintal era uma noite que não tem mais fim..." 🎵😔

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