Não podemos parar
Não
venho de um berço onde a leitura fosse prática diária, o hábito de falar em
público, muito menos a escrita. No norte do Tocantins, vivi no seio de uma
família que sempre viu os livros, embora parcos, como objetos de grande valor, assim
como a Bíblia para os cristãos, algo sagrado, para ficar guardado, longe do
perigo das mãos. Mas tenho boas lembranças com o mundo da leitura, embora com
pouco acesso a livros, uma relação muito bonita com a leitura de mundo que
Freire defendeu em toda a sua obra.
Sou neta
de agricultores que só sabiam desenhar seus nomes, que não puderam ler as
palavras, mas que sempre leram o mundo em suas diversas nuances, principalmente
as socioeconômicas. Meus pais não concluíram o ensino médio devido o casamento
precoce antes da maioridade legal. As leituras de que recordo em casa, feitas
pelos adultos são os cadernos de receitas e revistas de crochê, exclusivamente
consumidos pelo público feminino, e os livretos com narrativas de faroeste,
restritos à esfera masculina.
E para
as crianças? A leitura só foi incentivada na escola, começando pelas cartilhas
da alfabetização seguidas dos livros didáticos, e dos contos narrados pelas
professoras. Um gibi aqui, acolá, durante a meninice. Depois de dominar a
leitura da palavra, tinha esse hábito como um vício, algo involuntário. Quando
ia ao centro comercial, tentava ler todos os letreiros e placas de ruas que
avistava, ao ouvir a pronúncia de uma sigla, perguntava os adultos ou ia à
biblioteca da escola até sanar aquela curiosidade. Quando recebia livros novos
no início do ano letivo, lia todos os textos que encadeavam histórias, uma
espécie de ansiedade incontrolável.
Nas
redações escolares da adolescência, quando tentava transpor ao papel a visão de
mundo, era uma menina tida como espevitada, faladeira e meio encrenqueira
também. Recordo-me de ler voz alta uma redação sobre a exposição de Sebastião
Salgado na igreja matriz de minha cidade. Enquanto meus colegas falavam da
beleza, de recursos naturais da paisagem expressa nas obras, eu falei da fome,
da desigualdade social e da revolta em ver uma cova rasa no árido sertão
nordestino. Naquele momento não fui compreendida e ouvi que deveria falar
menos, e não escrever sobre “coisas ruins”.
Mas
como minha fama é de encrenqueira, não parei. Mesmo sem conhecer, parece que a
mensagem de Anzaldúa, escrita mesmo antes de eu ter nascido, alertava-me de que
“é preciso uma enorme energia e coragem para não aquiescer, para não se render
a uma definição de feminismo que ainda torna a maioria de nós invisíveis”.
Da filosofia,
sociologia e literatura clássica, as primeiras experiências vieram no ensino
médio, com Otelo, Sonhos de uma noite de verão, Iracema, A moreninha, Primo Basílio e Assédio e os debates em sala sobre a
dinâmica existencial do homem em sociedade. Na história da literatura, dividida
por seus estilos de época, via sempre um mundo distante do que vivíamos, uma
viagem a uma realidade paralela, a da burguesia. Já na universidade conheci Vidas Secas e A balaiada, narrativas com realidades
tão próximas, com personagens e enredos muito semelhantes à realidade de nossa
região. A partir de então encontrei-me como leitora, pude situar-me em meio às narrativas,
e a paixão pela literatura crescia.
Aqui
minha fala e minha escrita foram encorajadas pelos professores e colegas do
curso de Pedagogia. A vontade de escrever adormecida desde a adolescência
começava a despertar de seu sono profundo. Comecei os primeiros passos na
escrita acadêmica, ainda imatura, mas encorajada. Aos 21 anos acabei
enveredando pela escrita jornalística também, de forma tímida e insegura, mas
continuei a caminhar. Nessa fase a escrita foi tornando-se consequência das
leituras até aqui experienciadas. Ainda não era uma escrita polida, com valor
estético, mas agradava muito minha avó materna que sempre me pedia um texto
para homenagens nas reuniões de família.
Aos 23,
já em sala de aula, como professora de crianças e adolescentes, tive de
empenhar mais esforços para tentar seduzir meus alunos a sentirem necessidade de
ler como sempre senti. Não foi fácil, e talvez não tenha conseguido como
sonhei, mas não desisti. Pela exigência do fazer docente e da carreira que
acabei trilhando no mundo da comunicação, sempre movida pelo ímpeto da
necessidade de ler e escrever, cursei minha segunda licenciatura em letras.
Também estudei direito. Embora compreenda a importância de compreender a
dinâmica da esfera jurídica, a leitura que me fascina é a literária.
Profissionalmente poderia dizer que já estava
num patamar confortável, mas senti que faltava algo, que ainda não era a leitora
ideal que a literatura e a escrita exigem, sentia-me ainda ignorante sobre esse
mundo fascinante da leitura. Há um ano ingressei em um curso de pós-graduação
pelo mestrado profissional em Letras, Profletras na Universidade Federal do
Tocantins, a UFT, e pautada no princípio da dúvida que a filosofia nos coloca,
a relação com a literatura tornou-se mais avassaladora, o desejo de ler, mais
vital. A coragem para escrever menos tímida e mais segura, porque como Anzaldúa
nos alerta, “não podemos deixar que nos rotulem. Devemos priorizar nossa
própria escrita e a das mulheres do terceiro mundo”.

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