Vivemos a sociedade do espetáculo ou da hipocrisia?
Desabafo escrito em maio de 2020
Em
1967, ainda no cenário do pós-guerra e durante regimes totalitários, o escritor
francês Guy Debord, já dizia que “num mundo realmente invertido, a verdade é um
momento do que é falso”. De influência marxista, sua principal obra “Sociedade
do espetáculo”, tem influenciado a formação crítica ao redor do globo.
Por
indicação de uma amiga jornalista, quando refletíamos questões pertinentes à
esfera política, conheci a obra há alguns anos. Nos últimos dias, a memória dos
escritos filosóficos de Debord vêm me incomodando, principalmente pelo
substantivo “espetáculo”, numa crítica sensata à dinâmica da sociedade
contemporânea.
Suas
teorizações escancaram os bastidores e implícitos das engrenagens de uma sociedade
que sobrepôs a aparência à essência, as coisas aos seres, e as evidências às
experiências, por fim o registro ao sentido.
À
primeira vista você até pode se escandalizar e discordar da visão expressa na
obra, mas não pode negar a debilidade das esferas públicas e privada das
relações sociais, apontadas pelo autor.
Voltando um pouco mais na história da humanidade, faço um
contraponto com o Império Romano e sua política do “pão e circo” para manipular
o povo numa espécie de cegueira em relação aos problemas sociais de então, o
que assim como Debord, podemos definir como um verdadeiro espetáculo.
A necessidade de falar sobre relações apenas aparentes,
superficiais, da modernidade líquida de Bauman, "um mundo repleto
de sinais confusos, propenso a mudar com rapidez e de forma imprevisível”, vem desse cenário de hipocrisia que vivenciamos.
Nossa era enfrenta uma crise severa, a da (des)informação.
Nesse cenário de contágio global da Covid-19, além dos problemas de ordem
sanitária, estamos mergulhados na pandemia da ilusão, do espetáculo e da
hipocrisia. Como o sociólogo da modernidade líquida adverte, “na
sociedade contemporânea, emergem o individualismo, a fluidez e a efemeridade
das relações”.
Enquanto
milhares morrem dia a dia, outros milhões padecem nos corredores e macas do
sistema de saúde estrangulado, o sistema privado brasileiro apela na mídia a
necessidade de salvar os CNPJ’s, evitar a falência de empresas com frases e
chavões, como se o dinheiro viesse em primeiro lugar, e vem, para uma pequena
parcela da pirâmide social.
Enquanto
isso, na esfera pública, não vemos a presteza na liberação do auxílio
emergencial à população de baixa renda como vimos no socorro aos bancos. Mas o
que quero chamar a atenção é para a preocupação do setor público com as
estatísticas.
Além
de querer convencer a grande massa dos milhões investidos, em tempo recorde, em
equipamentos para o atendimento em saúde, outro ponto grave nesse momento é o
faz de conta que observamos na educação. Com o ano letivo severamente
comprometido, governos dos 26 estados mais do Distrito Federal, defendem a todo
custo, que a aprendizagem dos alunos está fluindo às mil maravilhas.
Diariamente, lançam propagandas com crianças e jovens muito felizes
“aprendendo” com um computador ou celular à sua frente, em plataformas virtuais
criadas especialmente para “garantir a continuidade nos estudos”.
Não
quero aqui, negar a eficácia dos recursos digitais com fins didáticos. Pelo
contrário, defendo a necessidade de se investir em ferramentas tecnológicas
para dinamizar a rotina das escolas públicas. O que chamo a atenção é para o
espetáculo que se monta na grande mídia sobre uma falsa realidade em torno das
oportunidades de aprendizagem da grande parcela que se concentra na base da
pirâmide social.
Está
errado ofertar alternativas de estudo durante o período de isolamento social?
De certo que não. O erro reside na falta de investimento ao longo dos séculos.
Antes de generalizar uma metodologia de ensino, sempre foi necessário ofertar
condições de acesso aos recursos educacionais.
Em uma matéria divulgada em 23 de março,
sobre o ensino remoto durante a suspensão das aulas, o jornalista Marcelo
Valadares, do portal G1, apresentou pesquisa divulgada em 2019 pelo Comitê
Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). De acordo com o estudo, “58% dos
domicílios no Brasil não têm acesso a computadores e 33% não dispõem de
internet. Entre as classes mais baixas, o acesso é ainda mais restrito. Nas
áreas rurais, nem mesmo as escolas têm acesso à rede mundial de
computadores: 43% delas afirmavam
que o problema é a falta de infraestrutura para o sinal
chegar aos locais mais remotos”.
Mesmo
com dados precisos sobre os recursos disponíveis nos lares dos alunos das
escolas públicas nos quatro cantos do país, o poder público silencia sobre as
alternativas de inclusão dessa parcela excluída das plataformas digitais. Mesmo
diante do apelo pelo adiamento do Exame Nacional do Ensino Médio, Enem, pelo
Ministério da Educação, o cronograma do maior vestibular do país segue seu
curso normal.
E o que
as secretarias de Educação estaduais fizeram em relação a isso? Apoiaram as
campanhas divulgadas pelos estudantes para tentar garantir-lhes tempo hábil e
oportunidade de se preparar? Não! As secretarias pressionam as unidades
escolares para participar de uma corrida desenfreada por números. Divulgam
rankings de inscritos para fomentar o espírito de competitividade onde o prêmio
é ser o destaque como escola, município, ou regional com maior adesão à
proposta excludente do MEC.
Mas, e
os alunos? Como irão estudar até a prova em novembro? Ah, isso não importa, o
que está em jogo são as estatísticas, o espetáculo! Temos de garantir o maior
número de inscrições nos programas que as secretarias estão ofertando.
Aprendizagem, é papel da família, está na Constituição. Sim está, mas cobrar da
família aparelho com acesso à internet para que seu filho estude em casa,
enquanto não se tem o que comer, é de uma crueldade sem precedentes.
Por que
digo tudo isso? Por que sou professora da rede pública. Trabalho em uma escola
da zona rural, e boa parte de meus alunos não tem uma alimentação minimamente
balanceada, quiçá aparelho smartphone com acesso à internet. Escrevo tudo isso
porque estou engasgada com tamanha hipocrisia divulgada na mídia. Pela pressão
ideológica que meus alunos têm sofrido, gerando angústia não apenas neles, mas
em mim, que tenho dedicado os últimos dias a fazer as benditas inscrições para
que mais uma vez, eles não sejam excluídos ao menos das estatísticas.
(Kayla Pachêco Nunes, professora da rede estadual do
Tocantins e mestranda pelo Profletras –UFT)
REFERÊNCIAS
Coronavírus faz educação a distância esbarrar no desafio do acesso à
internet e da inexperiência dos alunos. Disponível em: <https://g1.globo.com/educacao/noticia/2020/03/23/coronavirus-faz-educacao-a-distancia-esbarrar-no-desafio-do-acesso-a-internet-e-da-inexperiencia-dos-alunos.ghtml>
Acesso em 16 mai 2010.
DEBORD, Guy. Sociedade do espetáculo. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2000.
Zygmunt
Bauman - o pensamento do sociólogo da "modernidade líquida.
Disponível em:
<https://vestibular.uol.com.br/resumo-das-disciplinas/atualidades/zygmunt-bauman-o-pensamento-do-sociologo-da-modernidade-liquida.htm>
Acesso em 16 mai 2010.
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