A indesejada das gentes chegou

 



Há cerca de dois anos, conheci o poema ‘Consoada’, de Manuel Bandeira. Embora escrito há quase um século, serviu perfeitamente para o momento que uma amiga vivenciava, uma inesperada enfermidade.

 Com o dom da poesia, de tornar sensível o sentido do mundo e das experiências que nos moldam, aqueles versos marcaram-me, tanto pela riqueza da sua construção, como pela elegância com a qual minha amiga os recitou.

Para a semiótica, uma corrente de estudos linguísticos originada na França e que tem no Brasil pesquisadores como Luiz Fiorin, Diana Barros, Lúcia Teixeira e Luiza Silva, esta última tocantinense por adoção, o acontecimento pode ser entendido como o que é da ordem do inesperado e do impactante. Assim, o que nos impacta, de acontecimento, tende a tornar-se memória.

Ao escrever sobre Memórias da Guerrilha, a professora Luiza Silva nos explica de forma bem didática esse rico campo dos estudos semióticos: “

 A memória é sempre “imperfeita”, no sentido de sua incapacidade de comportar as “agudezas” da experiência, mas é nela que se constrói a “legibilidade” para o acontecimento, o que sobreveio, o momento fulgural para aquele que se inscreve a posteriori como sujeito da memória”.

Neste 02 de fevereiro, dia de Nossa Senhora das candeias e dos navegantes, todas essas memórias me visitaram. Primeiro, o poema de Bandeira, ao anunciar a chegada da indesejada, porque testei positivo para a Covid-19. Segundo, o que a semiótica ensina sobre o acontecimento e a memória.

Desde os primeiros sintomas, a urgente necessidade de ficar em isolamento, e de ter um diagnóstico confirmado seguido da profilaxia recomendada pelas autoridades de saúde, tenho observado algumas cenas que poderiam passar despercebidas em uma rotina comum. Mas hoje, em especial, não foram apenas fatos corriqueiros, foram acontecimentos e ficarão na memória.

As demonstrações de cuidado e apoio acompanhadas de receio e até medo, mostraram-me antíteses inusitadas: as mensagens virtuais sempre vieram carregadas de carinho e preocupação com a última vez em que mantive contato presencial; as broncas das irmãs, do chefe e de familiares para iniciar a medicação em comprimidos imediatamente, ao ponto de terem de administrar a primeira dose pessoalmente; e o amor de mãe em forma de alimento, servido quentinho, na marmita preparada e trazida pelas próprias mãos da genitora, mas entregues do outro lado do balcão, numa distância segura para confirmar o bem-estar da prole e sua própria segurança...

Nesse misto de antíteses e até ironias, trago a você, amigo leitor, o poema de Bandeira, que coloriu e acalentou a chegada da covid-19 em meu corpo, enriquecida pelos que me rodeiam:

Consoada

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
— Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.

Manuel Bandeira BANDEIRA, M., Libertinagem, 1930.

 

Com a vacina, o remédio, as orientações, e o carinho que nem mereço, sinto-me firme e forte para enfrentar os dias que virão no isolamento. Uma coisa é certa, a indesejada das gentes chegou, mas não me encontrou só, somos eu, a família, amigos, a ciência, informação e a vacina.

Comentários

  1. 👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼 Parabéns, Kayla. Qd a indesejável for embora, dê tchau p ela semiotizando.

    ResponderExcluir
  2. O modo mais criativo que já testemunhei de alguém dizer que testou positivo para a Covid.

    Além dos "cachés", literatura nela.

    Bela crônica
    Parabéns e fique logo boa..

    ResponderExcluir
  3. Que texto belo! A indesejada vai partir logo e você seguirá com sua coragem e poesia

    ResponderExcluir
  4. Texto sensacional, Kayla. São tantas e tão paradoxais as sensações de receber um temeroso diagnóstico positivo para Covid. Que sua recuperação seja breve e completa, e que sua literatura ganhe o mundo.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Salve-se quem puder porque precisamos salvar o ano letivo!

Nordeste: lugar de gente consciente e feliz

NÃO SEI COZINHAR!