Barbie, mais macho que muito homem
A onda rosa acabou me atingindo.
A mulher fora dos padrões de ‘bela, recatada e do lar’, que nunca acompanha os filhos ao cinema para ver as histórias da Marvel e DC (tipicamente tidas como adequadas ao universo masculino), entrou em uma sala escura para conferir na telona o longa inspirado na boneca mais famosa do século XX.
Mãe de meninos enfrentando a desafiadora fase da adolescência, levar os filhos e sobrinho para verem Barbie é mais um tabu que adorei desconstruir. A imagem que compõe esse texto não é mera ilustração, é o registro do que os séculos de educação machista fizeram em nosso imaginário coletivo: boneca não pode ser brincadeira de menino; homem não chora nem pode demonstrar sentimentos; ver o filme da Barbie está proibido porque só meninas vestem rosa; aos meninos, fica o azul, os cavalos, carros e a rudeza.
Só decidi assistir à produção de Greta Gerwig após a semana de estreia. Sem filas e em meio a muitos comentários nas redes sociais, para além da cenografia em tons pastel no dualismo pink/blue, não é à toa que Barbie dividiu opiniões. Como pano de fundo das personagens que dão vida às diversas versões da boneca e seus adjuvantes, o enredo questiona muitos dos estereótipos cristalizados no que o Ken da ficção reverberou como a lógica filosófica do patriarcado “onde homens e seus cavalos mandam em tudo”.
Da vida perfeita em plásticos e danças sincronizadas na Barbielândia, a protagonista estrelada por Margot Robbie parte do que o semioticista Eric Landowski teoriza como regime de programação, em que os papéis temáticos obedecem a uma dada regularidade (nada é questionado e tudo é previsível). Por meio do acidente (teorizado por Greimas como o momento em que o objeto afeta o sujeito), ao chegar ao mundo dos humanos a mulher estereotipada na boneca que não tem celulite vivencia experiências dolorosas desse mundo que para nós, expectadores, é da ordem do cotidiano. Na desigualdade de direitos entre homens e mulheres percebe que a oposição semântica aparência/essência ganha uma dimensão maior nessa vida real.
Padrões de beleza, jornada tripla, sexo frágil, e condições de servidão emocional impostas pelos Ken às Barbies são evidenciados durante a trajetória épica trilhada pela protagonista em busca do sentido de seu papel na organização social que integra.
Para encontrar a sua essência, essa Barbie da vida real (aqui como sujeita social), caminha em direção ao ajustamento (quando o actante reconhece-se como sujeito de direito que ao adquirir uma competência estésica - pelo sentir - em contato com outros sujeitos, questiona, dialoga e reivindica para que ambos encontrem o sentido de dada situação).
Ao trocar o salto agulha por uma sandália rasteira, em busca do sentido, reconhece seu papel actancial além de produto. Do mundo de faz de conta, a boneca dialoga com todas as mulheres e homens da vida real, mostrando que a invenção dos modelos de beleza e felicidade são produto da sociedade capitalista patriarcal, que por não saberem lidar com suas fragilidades, produzem objetos a serem perseguidos e consumidos em busca da vida perfeitamente programada.
Para manter esse regime de programação, durante muito tempo investiu-se em brinquedos para que meninas fossem programadas de forma lúdica a cozinhar, lavar e cuidar de bebês. Enquanto isso, meninos poderiam ser astronautas, cowboys, policiais, engenheiros, médicos, e até o Ken da praia, que não sabe nadar mas fica na areia mostrando as curvas do bíceps e divisões do tórax.
Nesse processo de ajustamento, após um golpe de Estado forjados pelo Ken enquanto a Barbie estereotipada estava fora e pouco antes de aprovarem nova Constituição, Barbies e suas muitas profissões unem-se pela sororidade e retomam a liderança de sua Barbielândia. Na reflexão sobre sua condição de mulher nesse universo até então dominado pelos Ken, encorajam-se e vão à luta não pela guerra dos sexos, mas pela equidade entre sujeitos numa sociedade que seja menos excludente, desigual e violenta.
Como moral da história, reverberam a máxima: “se a Barbie pode ser qualquer coisa, as mulheres podem ser qualquer coisa”, que me trouxe já na primeira cena, o refrão da música de Ney Matogrosso: sou mais macho que muito homem.
Embora saibamos que a indústria cultural tem a função de vender marcas e produtos através de produções como esse filme, deve servir também à desconstrução de tabus e preconceitos, oportunizando pelas experiências sensíveis como a da sétima arte, a tomada de consciência acerca da necessidade de falarmos sobre feminismo numa sociedade ainda tão machista.
Talvez por isso o filme tenha incomodado tanto uma parcela da sociedade. Pela defesa da ‘moral e bons costumes’, aconselharam minha irmã a não levar a filha de nove anos para assistir Barbie, afinal a criança vai ouvir ‘palavronas’ como patriarcado, feminismo e sororidade. Abominável que uma criança conheça tais termos não é mesmo? Há o iminente perigo dela tornar-se uma feminista radical e passe a questionar as variadas formas de exploração da mulher, a começar pela objetificação do seu corpo. Quem sabe ela ensine os colegas a expressarem seus sentimentos e a tratarem meninas com empatia e respeito e assim seja mau exemplo em casa e na escola?

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