É permitido sonhar!

 

Foto: Dilene Luz

Este texto aborda a dureza do cotidiano ao mesmo tempo em que faz um passeio pelo imaginário, percorrendo uma reflexão sobre a realidade. Convido-o a caminhar comigo por esse entrelugar da autoficção.

Imagine um lugarejo que nasceu num cantinho bem no interior do país. Com suas casinholas erguidas do topo ao final de ladeiras, compondo um zigue-zague na arquitetura local. Todas as ruas de chão batido, sombreadas por frondosas mangueiras, desembocam no verde sem-fim de campos cultivados com fileiras de babaçuais demarcando o horizonte de um céu sempre ensolarado. Bonito de se ver, não é mesmo? Renderia inclusive inspiração para uma das telas de Tarsila, Heitor dos Prazeres ou Shirley Tavares.

Essa paisagem de minha infância, até bem pouco, guardava em seu interior narrativas não tão singelas como a imagem que projetava. É que nesse pedaço de país, aqui no interior, o esquecimento fez morada. Durante quase cinco décadas, essa e muitas outras comunidades ao redor sobreviveram quase que invisíveis aos olhos das políticas públicas. Com suor e a força de trabalho de mãos calejadas, foram caminhando a passos lentos, resistindo ao tempo. Quase sem forças, tentavam falar aos maiores centros e seus líderes, “Lembrem-se desse povo aqui do Bico. Nós existimos!”.

Nesse grito quase silencioso, em diáspora, chefes de família e jovens não viam outra alternativa a não ser viver meses a fio longe dos seus em busca da sobrevivência. Lembro das tantas cenas de chegada tomadas pela alegria ao final de cada calendário concluído, bem como as de partida após os dias no aconchego do lar, afinal, os poucos recursos economizados fora não duravam o suficiente para o ano seguinte.

Lembro ainda, com vívida nitidez, da partilha do pouco que se tinha com as famílias que não conseguiam enviar um dos seus para o trabalho fora. Presença maior nesse fazer da memória, eram os temas nas rodas de brincadeira, na calçada: “Você já viu uma árvore de natal? E o papai Noel?”. Ah, isso era como as lendas contadas pelos mais velhos! Luzes, guirlandas, árvores em aspiral com bolas coloridas só aparecem na TV. O velhinho simpático, esse que distribui presentes, é apenas personagem dos filmes de Hollywood, afinal ele mora muito longe e não conseguia chegar por aqui porque não há estradas trafegáveis. Ou, talvez pelo clima tropical, quente e úmido, ou pelo esquecimento que nos assolava.

Fora as brincadeiras dos menores, a imaginação era quase como algo proibido. Pra que projetar o futuro quando não se pode garantir o presente de forma digna? Sonhar com o clima natalino era perda de tempo quando a luta pelo básico da sobrevivência era mais urgente. Não havia tempo nem ânimo para entrar em clima de festa, muito menos para gastos com enfeites que pareciam sem sentido. Natal, assim, era apenas brincadeira de criança.

Na diáspora em busca de oportunidade de formação, trabalho e sobrevivência, eu também me distanciei do meu lugar de origem. De certo modo, as lembranças dessas brincadeiras foram se distanciando, silenciadas com o fazer do tempo. Mas assim como as luzes acendem o clima de natal, essa memória foi presentificada ao ver a transformação do lugar da infância, outrora esquecido, em palco de luzes, alegria, partilha e esperança.

Muitas das ruas e estradas, antes acinzentadas pela poeira, hoje estão pavimentadas. Ainda há muitas casinhas espalhadas nas ladeiras, mas a maioria deixou de ser erguida com talos de buriti, barro e coberta com a palha do babaçu. Também há aqueles, como eu, que decidiram não retornar para moradia definitiva, mas muitos hoje garantem o sustento da família bem pertinho de casa. E as crianças com suas brincadeiras de sonhar?

Filhos das crianças do passado, os pequenos de hoje sonham, brincam e convivem com a magia do natal. As árvores, de todos os formatos, estão coloridas e, com mais estradas restauradas, o bom velhinho já consegue chegar por aqui porque além de terem se comportado como pede a tradição, a cidade saiu do esquecimento. Durante todo o ano, há escolas, merenda, livros... até universidade tem por aqui. O atendimento em saúde foi ampliado, e a oferta de emprego já é, em parte, uma realidade.

Aquele lugarejo bucólico não está esquecido, ainda existe em nossa memória. Com a força de muitas mãos, ainda calejadas, mas com voz firme e otimista que se levantou e partiu daqui para o centro do estado, as políticas públicas já começam a nos enxergar. As mãos, unidas, caminham a passos largos, guiadas pela transformação que nossa região vivencia.

Hoje, é permito a crianças e adultos, celebrar o natal e as boas novas que vêm chegando. Sim, é tempo de sonhar, esperançar, agradecer!


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